Chromatica: A filha pródiga do Pop

    2020 está sendo um ano repleto de plot twists, o fim de cada dia guarda escândalos e revoltas que tornam-no um enredo muito importante na história da Idade Contemporânea. Neste ano imprevisível, foi lançado o sexto álbum de Lady Gaga, Chromatica. Álbum que nasceu no mundo pop como redentor na carreira de Gaga, um tipo de retorno de uma filha pródiga. Um prodígio das pistas de dança, mas nem mesmo ele escapou do enredo incerto de 2020. As boates estão vazias, mas os fones e caixas de som abrem as cortinas para a pista de dança que Lady Gaga lutou para conquistar, como ela escreveu em Free Woman. As composições do #LG6, sua sonoridade e a divulgação, fizeram-me ter uma percepção interessante sobre o álbum. Desta vez, a obra pródiga da Mother Monster é uma abstração sobre o devoramento da mesma na indústria cultural.
    Sou fã de Lady Gaga desde meados de 2008, época em que seu primeiro single, Just Dance, dominou a programação da MTV e as rádios ao redor do mundo. De lá pra cá, foram projetos em vários gêneros musicais e cada um deles conversava com o momento da vida em que me encontrava na época de seu lançamento. Born This Way (2011) foi da época em que compreendi e abraçei minha sexualidade, ARTPOP (2013) o começo da fase universitária e Joanne (2016) lidando com as merdas e conquistas da vida. Mas é importante ressaltar, Joanne foi a resposta natural ao trabalho de Gaga com Tony Bennett em Cheek to Cheek (2014). Cada lançamento, criado de forma diferente do anterior, cobre seus futuros trabalhos com o véu da surpresa e do inesperado. Por isso acredito que Chromatica é uma narrativa muito importante para entender a jornada de Gaga no Pop e suas sequelas. Um álbum que vem como presente aos fãs, mas conta muito sobre as dores, sentimentos e pensamentos da artista sobre sua vida e consumo de sua obra.
    Como filha pródiga que retorna ao reino do pop, o projeto Chormatica entrega conceito e coesão como sacrifício pela sua aceitação nas terras do pai. A tendência do reino no momento é o conceito de nostalgia, marcado na inspiração e ressignificação da sonoridade do final do século XX. Uma onda nostálgica. Esse sentimento está presente em outros importantes lançamentos no reino do pop neste ano, como After Hours  do The Weeknd e Future Nostalgia da Dua Lipa - e não, não é só pelo título do álbum, ok!? As principais paradas musicais mostram o quão popular estão as sonoridades dos anos 1980 e 1970. Gaga entrega, em Chromatica, um álbum totalmente inspirado nos sons dos anos 1990 e começo dos 2000. Não tinha como prever, o álbum começou a ser produzido a dois anos e foi uma experiência catalisadora, de cura, nas palavras de Gaga. Não tinha como ela prever esse trending, mas a filha pródiga entrou no reino com roupas que mais ninguém estava usando.
    Essa nostalgia me faz questionar se ela é uma resposta à imprevisibilidade de futuro que 2020 nos condicionou. Voltamos e celebramos o passado, mas não apenas em suas formas e estética, como também em seus valores. A nostalgia é o novo produto de uma sociedade que ainda não conseguiu inventar um novo amanhã, ocultado pelos dilemas da pandemia.
    Além do conceito de nostalgia envolvendo a sonoridade do álbum, Gaga começa uma era referenciando arquétipos da cultura pop como o filme Mad Max (1979) e a estética pós-apocalíptica de animes e séries como Power Rangers. Os punks da gentileza, são uma das tribos que Gaga criou para narrar sobre um universo em que ninguém é melhor ou maior do que outra pessoa, mas mesmo lá eles enfrentam disputas por poder e autoridade e cabe a esta tribo, representada pela cor rosa, pregar a união através da música e da dança.
    Nas entrevistas de divulgação do álbum, Lady Gaga afirmou que Chromatica  não é uma interpretação distópica ou utópica da realidade, mas uma abstração da sua percepção sobre o mundo e suas contradições. Como qualquer obra artística, direta ou indiretamente, ela guarda vestígios sobre o passado da época e da sociedade que a produziram. Uma época que vive a contradição de ser extremamente desenvolvida tecnológicamente e ainda lida com a vigência de valores fortes de séculos passados. Racismo, machismo, LGBTQfobia, negacionismo histórico e científico convivem lado a lado com o avanço das redes sociais e as demandas por melhores condições de vida, sobretudo, durante a pandemia. O mundo real explodiu em enfrentamentos contra a supremacia branca, contra o genocídio da população preta, contra "despolíticas" públicas no combate à disseminação da Covid-19 e a frase que abre o primeiro clipe da era Chromatica, Stupid Love, é: "O mundo apodrece em conflitos". Quando xs queers falam que Gaga veio para salvar o pop é uma simplificação do ocorrido, Lady Gaga em sua versão "filha pródiga" volta à casa para poder testemunhar através de seu sacrifício que ainda há tempo de lutar pelo amor fraternal entre os seres humanos.
    Apesar desse aspecto social na obra Chromatica, as composições estão em um aspecto bem distante de Born This Way, cuja tracklist era notoriamente voltada para questões sociais. As novas faixas abordam traumas e complexos psicológicos que Gaga enfrenta em sua carreira. Em faixas como Sour Candy (parceria com o girl group BlackPink) e Plastic Doll, o eu-lírico de Gaga se descreve como objetos que são consumidos pela massa da indústria cultural, como produtos que são devorados, abertos ao meio e dissecados, arrancando dela sua própria humanidade. O sacrifício, portanto, que a filha pródiga enfrentou até poder voltar às terras do pai, foi abrir mão de sua liberdade para alcançar o estrelato, foi ser devorada como doces que nunca satisfazem e sempre precisa-se de mais e mais, mesmo que isso a esvazie, ou como uma boneca que serve para reforçar estereótipos e que estará sempre presa a uma caixinha. O grito em Chromatica é o desejo de ser devorada, mas não como um simples produto, mas que as massas saibam que estão devorando um ser humano.
    Penso que este sacríficio também está relacionado às violências que Gaga sofreu, sobretudo, no começo da carreira. Em Fun Tonight, a música mais contraditória do álbum e a que mais me causou reflexões, Gaga canta à um interlocutor que este ama paparazzi, ama a fama, mesmo sabendo que isso a causa dor e a faz sentir presa em um inferno. Em um primeiro momento podemos pensar que se trata de um desabafo a um parceiro amoroso, mas para mim essa faixa tem mais camadas que refletem as consequências do devoramento de uma diva pop. As palavras, frases, bordões são muito importantes na indústria cultural, ainda mais no mundinho pop, em que em apenas poucos caracteres o público de um artista sabe se ele está fazendo uma referência à suas obras, a outro artista ou a qualquer outra coisa. Neste caso, o uso do termos "paparazi" e "the fame", na letra original, fazem-me pensar que não foi uma escolha aleatória para descrever um sujeito que adora a vida de celebridade, mas que ela está falando como o público sobre seu primeiro álbum de estúdio The Fame e o hit Paparazzi. Gaga, nos últimos anos, tem afirmado que foi violentada por um produtor musical no começo de sua carreira e o produtor principal da música Paparazzi, Rob Fusari, teve um breve caso com ela. Pelo que afirmam biografias não autorizadas de Lady Gaga, quando os dois começaram a sair Fusari já estava em um outro relacionamento. Gaga nunca detalhou tanto sua relação com Fusari, mas ao ouvir Fun Tonight peguei-me pensando "E se foi ele? Será que é por isso que ela diz que cantar Paparazzi a machuca?". Isso é só especulação de um fã, não quero condenar nem julgar Fusari sem provas, mas que a dúvida ainda grita em mim todas as vezes que ouço a música, ah, ela grita à plenos pulmões.
    Chromatica não é para mim o melhor álbum da discografia da Gaga, mas ele sem dúvidas está entre os mais importantes em sua carreira. Assim como ARTPOP nasceu para ser uma rebelião criativa, Chromatica nasceu para ser um redentor da humanidade de Gaga diante às massas. Com produções que entregam ótimas farofas, mas nada muito fora da caixinha, Lady Gaga apresenta um projeto que tem por objetivo a trazes de volta ao mundo pop. Da mesma forma que na parábola bíblica do filho pródigo, a obra pródiga de Gaga saiu para o mundo do entreterimento destinada a ser uma das principais revolucionárias na indústria pop do começo do século XXI, mas isso a machucou, a torturou, a abusou e a fez uma mulher ainda mais forte, decidida e com uma missão clara: pregar a bondade para o mundo através de sua música. Se o filho pródigo retorna quase morto e estrupiado, Chromatica é um retorno triunfal através das ondas sonoras dos anos 90. O pop foi salvo, nosso mundo talvez.
   

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