"Fragmentado" e a ruptura das expectativas

CONTÉM SPOILERS!

      Domingo é um dia da semana que combina com filmes e "até breve". Minha amiga viajará para a América do Norte no meio desta semana, então resolvemos sair para colocar os babados em dia. Poços de Caldas estava coberta por um céu estrelado e uma leve friagem dominava o ar. Não havia tantas pessoas nas ruas, um pouco pelo frio, outro tanto pela crise? 
      Seguimos cruzando as ruas, pincelando as lojas com os detalhes de nossos relacionamentos, enquanto esperávamos dar o horário do filme que assistiríamos mais tarde. Tivemos duas horas até a sessão começar, tempo suficiente para rir de nossos problemas e ficar impaciente no fast food mais concorrido e apertado da cidade.
      Faltando pouco mais de meia hora, nos dirigimos ao cinema. Somos ambos fãs de filme de suspense e terror. Em nossa antiga república (saudosa Cabron!), acompanhávamos diversos diretores e séries televisivas que tiravam nossa tranquilidade com obras, impecáveis ou não, destes gêneros. Podíamos ficar horas falando sobre casos de serial killers, sequestradores e as mais diversas figuras  excêntricas que protagonizavam as histórias.
      Para esse dia, escolhemos assistir o novo filme do diretor M. Night Shyamalan (Sinais, O Sexto Sentido), o longa-metragem Fragmentado. O filme, protagonizado por James McAvoy e Anya Taylor-Joy, conta a história de Kevin (McAvoy), um rapaz que havia desenvolvido 23 personalidades  que alternavam o domínio de seu corpo.
      Confesso que acompanhando a divulgação do filme nas redes sociais e na televisão, ficou em segundo plano, em minha mente, o sequestro de 3 garotas que dão o ponta pé inicial da narrativa. Sou fã de McAvoy desde que, no mesmo cinema, ele me surpreendeu com sua interpretação em O Procurado. Imaginar que agora ele voltava, não só interpretando 23 personagens diferentes, mas 23 personalidades distintas que habitavam o mesmo corpo era um convite muito instigador!
      Depois de poucos trailers e muitas propagandas, o filme iniciou como afirmei acima com o sequestro de 3 jovens que acabavam de sair de uma festa de aniversário. Casey (Taylor-joy), Claire (Haley Lu Richardson) e Marcia (Jessica Sula) estavam dentro de um carro esperando o pai de Claire fechar o porta malas para irem embora de um restaurante, mas a porta se fechou e outro homem entrou no seu lugar. Em uma sequencia rápida, o homem coloca uma máscara e espirra alguma substância nas garotas que as fazem desmaiar. Quando elas acordam elas estão presas em um pequeno quarto com duas camas e um banheiro.
      Na sequência de cenas seguinte, as jovens acordam e tem uma discussão sobre fugir do cativeiro. Casey não concorda com o plano de Claire de tentar lutar com o sequestrador, o que gera uma discussão que poderia ter sido muito melhor aproveitada pelas atrizes. Primeira expectativa fragmentada. Passamos então a acompanhar flash backs do passado de Casey, com o pai e o tio caçando em alguma floresta. Shyamalan escolheu uma paleta de cores mais viva para estas memórias, o que contrapõe com o tom escuro e sombras que aumentam gradativamente no filme.
      Vamos conhecendo junto delas as personalidades que habitam o corpo de Kevin. A primeira que conhecemos é Dennis, a personalidade do homem que sequestrou as garotas. Depois em uma cena que ficou muito interessante, ouvimos Dennis discutindo com uma mulher pela fresta da porta do quarto. Ela se aproxima e ao destrancar a porta, nos deparamos com Patricia, uma personalidade de mulher criada pelo inconsciente de Kevin. Era possível identificar as risadas misturadas com os sons de surpresa de nós espectadores, McAvoy nos dava um dos grandes presentes do filme ao nos entregar uma personalidade diferente não só por suas roupas, mas pela expressão de seus olhos.
      A terceira personalidade que nos é apresentada é Hedwig, um garoto de 9 anos, fã de Kanye West. A principio pode parecer que esta é mais inocente das personalidades de Kevin, entretanto ao longo do filme descobriremos que Hedwig tem um papel fundamental em quem domina "a luz", consciência de Kevin.
      Ao aprofundar na performance das personalidades de Kevin, é muito interessante como em algumas sequencias de cena a tela se torna o ponto de vista das vítimas. A sala escura do cinema se transforma no apertado armário em que Claire se esconde durante sua tentativa de fuga. As frestas da porta de alumínio nos fazem sentir o temor quando Dennis passa correndo na frente do armário, mas depois de alguns segundos de silêncio, ele subitamente surge na frente do armário e captura a jovem, o que levou boa parte dos espectadores (enfase na reação de minha amiga) a gritarem assustados.
      Os planos usados por Shyamalan foram a segunda expectativa fragmentada. Ao mesmo tempo em que cenas assim me conquistaram, a constante mudança para primeiro plano, onde destacava cada personagem em suas falas, gerou uma narrativa cansativa visualmente. Mas "sacomé", o cara está lá dirigindo e escrevendo seu quinquagésimo filme e eu estou desse lado apenas partilhando minhas impressões! No T, no shade!!
      Mas a narrativa de Shyamalan também nos cativa quando passamos a acompanhar a relação das personalidades de Kevin com sua psicóloga, a doutora Karen Fletcher (Betty Buckley). Fletcher é uma especialista em casos de transtorno de identidade, ao decorrer da narrativa a psicóloga vai preenchendo as lacunas abertas pelas questões que ficam no ar, com explicações que balizam entre o científico e o místico. Ao mesmo tempo que ela é representada como desacreditada pelo meio acadêmico, há cenas com ela compondo uma mesa de conferências sobre o assunto.
      As idas das personalidades de Kevin à psicóloga são precedidas de e-mails genéricos escrito por alguma das personalidades pedindo por uma consulta. Fletcher a cada sessão vai aprofundado na conversa com a até então personalidade que se apresenta, Barry, um estilista. A psicóloga constantemente, durante as sessões, afirma que aquele que se apresenta não é de fato o estilista. Em um das minhas sequencias favoritas, a psicóloga consegue convencer a personalidade se assumir, e acompanhamos um pretenso Barry dar lugar ao sequestrador Dennis.
      Nas conversas entre Dennis e Fletcher, eles abordam uma nova personalidade de Kevin. Ela é conhecida pelas demais personas como a Besta, um ser superior que habitaria a mente de Kevin com os outros. O filme traça uma relação entre o transtorno de identidade e super habilidades, contando de casos em que sujeito cegos de nascença adquiriram a capacidade de enxergar quando desenvolveram uma outra personalidade. A Besta seria essa manifestação suprema no corpo mortal de Kevin.
      O filme é extremamente interessante, porque acaba que as fronteiras ente os gêneros, suspense e comédia, se tornam muito tênues dentro da narrativa. Sequencias que despertavam risadas na platéia, eram seguidas de outras que faziam um silêncio mórbido tomar conta da sala de cinema.
       Mas houve uma terceira expectativa que o filme acabou por fragmentar em mim. Eu fui com ânsia ao meu pote dourado! Infelizmente não temos McAvoy interpretando 23 personas diferentes. Pode ter sido para polpar o filme de se tornar uma narrativa muito extensa? Talvez. Mas ainda assim, a propaganda gerada ao redor do novo filme do diretor de A vila (2004), era de que teríamos uma performance estrondosa de 23 personalidades. Entretanto, McAvoy acaba dando ótimas interpretações da Horda, como as personalidades denominaram a aliança entre Patricia, Hedwig e Dennis. Temos um curto espaço para conhecer o tímido e talentoso Barry, um rascunho para pincelar um pouco de outras duas personalidades. Então acabou que no fundo o filme terminou com um gostinho de "esperava mais" em minha boca.
         A quarta expectativa fragmentada foi que o filme dá mais enfase ao passado de Casey, a vítima que mantém uma relação muito próxima das personalidades de Kevin, do que ao protagonista do filme. Enquanto somos recheados pelas cores do passado dela, só temos um vislumbre de como foi a infância de Kevin antes de criar suas personalidades. Fica a questão: foi proposital para um próximo filme? Talvez. Mas é um tiro no escuro, porque nada na indústria cinematográfica garante com 100% de segurança que haverá uma parte dois, e que seja tão boa quanto o anterior (vide a saga Percy Jackson). Acho que este foi o pedaço que se fragmentou da tela com mais força e se alojou em mim! O personagem poderia ser melhor aprofundado, dando mais tensão à história.
         Ao fim do filme, descobrimos que este universo está ligado ao de outra produção de Shyamalan, o longa protagonizado por Bruce Willis e Samuel L. Jackson, Corpo Fechado (2000). Fica então a sensação de que não contar a história de Kevin em Fragmentado vem por uma ideia de abranger o projeto em uma franquia bem maior. Aguardemos. Até lá fica a dica para assistirem o filme! Mesmo que sejam 6 ou 7 personas diferentes, James McAvoy apresenta um belo presente para quem tornou um fã naquele mesmo cinema a anos atrás com uma outra performance incrível. A escolha da paleta de cores e planos também transforma o longa em um produto além do esterótipo sobre filmes que representam sequestros e cativeiros. É uma obra peculiar, cativante, engraçada que faz seu coração fragmentar a cada transformação de suas personagens!
    Saímos da sala escura para o frio de Poços. Nos despedimos, com aquele até breve que significava tanto o nosso próximo encontro quando ela voltasse de sua viagem, como quando encontraríamos as outras personalidades de Kevin.

Avaliação: 7.
Mais avaliações: http://www.imdb.com/title/tt4972582/ 

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