O conto do chá

                O morro continuava íngreme e os dois amigos desciam a passos rápidos. Era um bairro de periferia, as ruas eram recheadas por moradias das mais diversas formas e cores. O sol ardia no alto fazendo os colegas caçarem as sombras de árvores. Carros cruzavam em várias direções, poeira e fumaça aumentavam o mormaço do fim de março.
                  Eram um rapaz e uma moça que desciam a ladeira. Trajavam roupas que marcavam aquela doce fase de encontro entre o fim da adolescência e começo da vida adulta. Conversavam sobre a música do momento e chegavam a debater a desconstrução de conceitos sociais. O mal de Humanas. 
               Os dois viraram uma esquina, um frio tomou a barriga de ambos. Haviam chegado. O tabu se manifestava até mesmo na cabeça dos estudantes. Eles olhavam para todos os lados e parecia que o próprio bairro os vigiava. Janelas, portões, cabeças, sombras tudo era fundamento para o medo de ser pego. O coração batia mais rápido, e eles podiam ver melhor aqueles dois moleques sentados na esquina mal cuidada. Os matos dominavam parte do concreto, buracos e rachaduras pipocavam pela calçada e no meio da ruela mal movimentada. 
             A menina resolveu esperar um pouco mais atrás e com o coração na boca, o menino avançou em direção aos rapazes. Ele não tinha nada a temer. Era apenas uma questão de fomentar todo o estereótipo de masculinidade que ele havia jogado no limbo. Até mesmo sua sombra endireitou a coluna, e marchou frente ao inimigo.
            Os meninos sentados na calçada o olhavam. Era um olhar frio, que deseja que logo se resolvesse o que ele precisava. Um olhar que contava mais do que os dois gostariam que aquele universitário magricela soubesse. Movido pelo ímpeto de sua masculinidade ele sussurrou: "Tem chá?". Os dois confirmaram e com rispidez perguntaram qual a quantidade. O outro respondeu, e os dois se moveram para um dos casebres no meio da rua.
               O universitário olhava para cima e para baixo. Cada segundo fazia seu peito pular, não havia como controlar toda insegurança. Todo rosto parecia suspeito. Todo carro parecia uma viatura. Ele não poderia ficar ali muito tempo, e se o universo conspirasse contra ele? "Corre neguinho", ele gritava mentalmente.
                Os outros dois voltaram e passaram a encomenda para o rapaz. No leve contato entre as peles, dinheiro e chá dois mundos se cruzaram. Era possível notar quão grandes eram as valas que os separavam. Tempo e espaço, meios e anseios. Dois futuros tão distintos se encontravam, para talvez uma hora mais tarde gozarem de risadas sobre quão ridículo o mundo do outro lhe parecia.
                 O estudante encontrou com sua colega e subiu o morro, o coração tranquilizava-se a cada metro. Os dois jovens voltaram a se sentar naquela velha esquina, esperando um próximo cliente. A rua continuava silenciosa e quente. As sombras dançavam no asfalto mas o mundo já não tinha a mesma cor de antes.

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